Fiz esta postagem pensando no nosso leitor amigo Ugo Werneck.... não sei se ele chegou a ler.... A matéria é do final do mês de novembro, mas, não podia deixar de registrar o que acontece na realidade destes festivais gastronômicos. Aliás, se fala claramente no texto que os franceses são os maiores caçadores da Europa e que ignoram as leis. Caraca, eu achava que isto era coisa dos ingleses.... que tristeza!!!!
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Paris ‒ O chef Alain Dutournier estava tão empolgado com as primeiras carnes de caça da temporada que transformou a recepção do seu restaurante, o Carré des Feuillants, agraciado com duas estrelas pelo guia Michelin próximo ao Jardim das Tulherias, em uma natureza morta.
A bem da verdade, 'morta' é uma excelente descrição.
Ele cobriu uma mesa grande com folhas de árvores e dispôs os pés de duas lebres da Alsácia, de mais de cinco quilos cada, e dois coelhos de Sologne por cima; depois, vieram cinco patos-reais da Bretanha e dez perdizes cinzentas de Champagne, cujas cabeças ele ajeitou delicadamente sobre a lateral da mesa, com o pescoço esticado e o bico para fora. O toque final foi um pouco de cor: castanhas e nozes ainda na casca, uma travessa de cogumelo porcini, uma tigela com sete trufas brancas italianas, algumas abóboras japonesas e ramos de beterraba.
Nós, os clientes, fomos aconselhados a ignorar o sangue que pingava do bico do pato direto no carpete.
O outono representa a abertura da temporada de caça na França, que dura seis meses, época em
que os apaixonados pela atividade vestem roupas esquisitas e vão para a floresta com galgos e espingardas ‒ e também a época em que os chefs competem para transformar o resultado da matança em uma verdadeira orgia gastronômica.
Na França ela é um evento bem diferente do que ocorre nos EUA e no Reino Unido, onde a perseguição e a morte são tão importantes quando a preparação e a degustação. Aqui o que importa é a jornada dos animais mortos dos campos e florestas para as mesas de restaurantes estrelados e bistrôs rurais, cujos cardápios são criados a partir deles, seja um pombo minúsculo ou um javali gigantesco.
'O animal não pode morrer à toa', explica Dutournier, que aprendeu a caçar ainda criança. 'É preciso investir tempo para fazer uma coisa boa; aliás, não só fazer como ter prazer culinário da experiência.'
E ensina que há regras que têm que ser obedecidas: 'As aves fêmeas devem ser veneradas, nunca mortas; já a lebre selvagem deve ser abatida com um tiro no ombro, nunca no estômago, para evitar que a carne fique com cheiro forte e a perdiz de qualidade deve ter o cheiro fresco da fralda de uma criança.'
Como não entendi a última colocação, Dutournier teve que explicar: 'Com cheiro de leite'.
Tentei tirar da cabeça não só esse pensamento como a imagem dos animais recém-abatidos quando o almoço foi servido. Felizmente fui introduzido à refeição com uma sopa de castanha com um toque de trufas brancas italianas e foie gras ‒ ou seja, quando a lebre chegou à mesa, eu já estava preparado. Ela foi servida em um filé mal passado, como a clássica 'lièvre à la royale' (lebre real), com trufas negras e mais foie gras, cozida em vinho Sauternes e acompanhada de beterraba, batata e salsão.
A França possui a maior comunidade de caçadores da Europa, com 1,2 milhão de registros, trinta por cento a mais que no Reino Unido e quatro vezes mais que na Alemanha ‒ e ao contrário da tradicional caça à raposa inglesa (hoje proibida), não faz diferença entre classes sociais.
No início da Revolução Francesa, a prática, até então privilégio exclusivo da nobreza, era aberta a todos; hoje, quase metade dos caçadores franceses é composta de trabalhadores e fazendeiros. (Porém, continua sendo uma atividade essencialmente masculina: apenas dois por cento são mulheres. E para a elite, é um meio tão importante de fechar negócios como o golfe o é nos EUA.)
O país tem dois canais pagos de TV dedicados à caça e à pesca. Há revistas sobre o assunto em qualquer banca. Três de novembro, dia de São Humberto, padroeiro da atividade, é comemorado com banquetes locais e feiras rurais. Em algumas partes do país, os caçadores nem vão trabalhar e as lojas fecham quando pombos e patos começam a voar.
Embora a caça com cães aos domingos tenha sido proibida em quase toda a Europa, os franceses não se importam muito com esses melindres. De fato, impedir um caçador de atuar é infração nacional punida com multa de 1.500 euros. (Um partido político chamado Caça, Pesca, Natureza, Tradição batalha pelos direitos da França rural.)
Apesar disso, há certos limites. A Agência Nacional de Caça e Vida Selvagem, órgão do governo que estuda e mantém habitats, determina as cotas de animais para cada região e aplica exames rigorosos para a obtenção de licença. Os candidatos têm que saber detalhes como o ciclo reprodutivo do coelho, o número médio que a pata bota de cada vez, as pegadas de espécies animais e aves, e a montagem de espingardas. Eles não podem usar revólveres, pistolas de ar e nem equipamento de visão noturna.
Como em outros países ocidentais, a caça diminui conforme a população migra do interior para as cidades ‒ e mesmo com uma campanha ativa para recrutar os jovens, a cada ano o número de caçadores é cada vez menor. Há menos terra sendo cultivada, consequentemente há menos animais; este é o pior ano para a perdiz cinza desde 1983.
O sucesso da empreitada, porém, é apenas parte do atrativo.
'Às vezes o ritual é mais importante que o resultado', conta Bruno Mollot, presidente da sociedade de caça de Baby, uma aldeia com cerca de 80 habitantes na região do Seine-et-Marne. 'A amizade e o convívio são mais importantes que a morte dos animais.'
Como também é a degustação.
No bairro do Marais, em Paris, o Museu da Caça e da Natureza exibe uma coleção de quase três mil objetos relacionados à prática, incluindo pinturas, esculturas, armas, troféus, móveis, taxidermia e antiguidades culinárias como terrinas de cerâmica para patê do século XVIII no formato de cabeça de javali. Em uma mansão ao lado fica o Clube de Caça e Natureza, que oferece a qualquer hora a seus sócios ricos estrangulamento, esfolamento, depenagem e amarração para o preparo da carne.
É tão patriótico que quando os membros da Assembleia Nacional contribuíram com suas receitas favoritas para um livro de receitas chamado 'The Cuisine of the Republic', várias levavam carne de caça. (Uma delas, feita com lebre, foi descoberta em um livro do século XVIII; o preparo leva cinco dias.)
No L'Assiette, um bistrô no 14º arrondissement, na Margem Esquerda, o chef David Rathgeber herdou a paixão pela caça do pai e a da preparação de sua mãe. 'Eu acho o preparo mais interessante que o abate', confessa.
Uma de suas especialidades do início da temporada é a torta de carne. Ele molda a massa em formato de domos, como se fosse um escultor moldando argila, e recheia tudo com uma mistura de carne de pato, foie gras, pedaços de carne de porco, coração e fígado de pato, chalotas, alho, tomilho e louro que passa a noite marinando em conhaque e vinho branco.
Conforme a temporada avança e diferentes opções se tornam disponíveis, sua criatividade entra em ação ‒ bem diferente do que aconteceu quando inaugurou o Benoit em Nova York, em 2008, com o chef Alain Ducasse. Rathgeber percebeu rapidinho que os norte-americanos jamais se entusiasmarão com a temporada de caça como os franceses.
'Eles se recusam a comer. Não podíamos preparar coelho porque eles se revoltavam com o fato de termos matado os bichos. 'Adoramos o Pernalonga', viviam me dizendo. E os veados, então? Não dava para fazer carne de veado por causa do Bambi. Que desperdício!'
A bem da verdade, 'morta' é uma excelente descrição.
Ele cobriu uma mesa grande com folhas de árvores e dispôs os pés de duas lebres da Alsácia, de mais de cinco quilos cada, e dois coelhos de Sologne por cima; depois, vieram cinco patos-reais da Bretanha e dez perdizes cinzentas de Champagne, cujas cabeças ele ajeitou delicadamente sobre a lateral da mesa, com o pescoço esticado e o bico para fora. O toque final foi um pouco de cor: castanhas e nozes ainda na casca, uma travessa de cogumelo porcini, uma tigela com sete trufas brancas italianas, algumas abóboras japonesas e ramos de beterraba.
Nós, os clientes, fomos aconselhados a ignorar o sangue que pingava do bico do pato direto no carpete.
O outono representa a abertura da temporada de caça na França, que dura seis meses, época em
que os apaixonados pela atividade vestem roupas esquisitas e vão para a floresta com galgos e espingardas ‒ e também a época em que os chefs competem para transformar o resultado da matança em uma verdadeira orgia gastronômica.
Na França ela é um evento bem diferente do que ocorre nos EUA e no Reino Unido, onde a perseguição e a morte são tão importantes quando a preparação e a degustação. Aqui o que importa é a jornada dos animais mortos dos campos e florestas para as mesas de restaurantes estrelados e bistrôs rurais, cujos cardápios são criados a partir deles, seja um pombo minúsculo ou um javali gigantesco.
'O animal não pode morrer à toa', explica Dutournier, que aprendeu a caçar ainda criança. 'É preciso investir tempo para fazer uma coisa boa; aliás, não só fazer como ter prazer culinário da experiência.'
Damien Lafargue/The New York Times |
Como não entendi a última colocação, Dutournier teve que explicar: 'Com cheiro de leite'.
Tentei tirar da cabeça não só esse pensamento como a imagem dos animais recém-abatidos quando o almoço foi servido. Felizmente fui introduzido à refeição com uma sopa de castanha com um toque de trufas brancas italianas e foie gras ‒ ou seja, quando a lebre chegou à mesa, eu já estava preparado. Ela foi servida em um filé mal passado, como a clássica 'lièvre à la royale' (lebre real), com trufas negras e mais foie gras, cozida em vinho Sauternes e acompanhada de beterraba, batata e salsão.
Damien Lafargue/The New York Times |
A França possui a maior comunidade de caçadores da Europa, com 1,2 milhão de registros, trinta por cento a mais que no Reino Unido e quatro vezes mais que na Alemanha ‒ e ao contrário da tradicional caça à raposa inglesa (hoje proibida), não faz diferença entre classes sociais.
No início da Revolução Francesa, a prática, até então privilégio exclusivo da nobreza, era aberta a todos; hoje, quase metade dos caçadores franceses é composta de trabalhadores e fazendeiros. (Porém, continua sendo uma atividade essencialmente masculina: apenas dois por cento são mulheres. E para a elite, é um meio tão importante de fechar negócios como o golfe o é nos EUA.)
O país tem dois canais pagos de TV dedicados à caça e à pesca. Há revistas sobre o assunto em qualquer banca. Três de novembro, dia de São Humberto, padroeiro da atividade, é comemorado com banquetes locais e feiras rurais. Em algumas partes do país, os caçadores nem vão trabalhar e as lojas fecham quando pombos e patos começam a voar.
Damien Lafargue/The New York Times |
Apesar disso, há certos limites. A Agência Nacional de Caça e Vida Selvagem, órgão do governo que estuda e mantém habitats, determina as cotas de animais para cada região e aplica exames rigorosos para a obtenção de licença. Os candidatos têm que saber detalhes como o ciclo reprodutivo do coelho, o número médio que a pata bota de cada vez, as pegadas de espécies animais e aves, e a montagem de espingardas. Eles não podem usar revólveres, pistolas de ar e nem equipamento de visão noturna.
Como em outros países ocidentais, a caça diminui conforme a população migra do interior para as cidades ‒ e mesmo com uma campanha ativa para recrutar os jovens, a cada ano o número de caçadores é cada vez menor. Há menos terra sendo cultivada, consequentemente há menos animais; este é o pior ano para a perdiz cinza desde 1983.
O sucesso da empreitada, porém, é apenas parte do atrativo.
'Às vezes o ritual é mais importante que o resultado', conta Bruno Mollot, presidente da sociedade de caça de Baby, uma aldeia com cerca de 80 habitantes na região do Seine-et-Marne. 'A amizade e o convívio são mais importantes que a morte dos animais.'
Damien Lafargue/The New York Times |
Damien Lafargue/The New York Times |
É tão patriótico que quando os membros da Assembleia Nacional contribuíram com suas receitas favoritas para um livro de receitas chamado 'The Cuisine of the Republic', várias levavam carne de caça. (Uma delas, feita com lebre, foi descoberta em um livro do século XVIII; o preparo leva cinco dias.)
Damien Lafargue/The New York Times |
Uma de suas especialidades do início da temporada é a torta de carne. Ele molda a massa em formato de domos, como se fosse um escultor moldando argila, e recheia tudo com uma mistura de carne de pato, foie gras, pedaços de carne de porco, coração e fígado de pato, chalotas, alho, tomilho e louro que passa a noite marinando em conhaque e vinho branco.
Damien Lafargue/The New York Times |
'Eles se recusam a comer. Não podíamos preparar coelho porque eles se revoltavam com o fato de termos matado os bichos. 'Adoramos o Pernalonga', viviam me dizendo. E os veados, então? Não dava para fazer carne de veado por causa do Bambi. Que desperdício!'
FONTE: NY Times
Quero voltar pra barriga da minha mãe!!!!
ResponderExcluirQUANDO VAMOS EVOLUIR???
ResponderExcluirSimone Vasconcelos
E eu que pensava que a França seria um país civilizado!
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