Lembro que, quando pequena ao ir passear em Paquetá, assistia o tempo todo da viagem estes animais acompanhando a barca e dando este festival de beleza.
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RIO - A manhã na Baía de Guanabara começou com cara de ressaca. Por volta das 7h, um bote inflável movido a motor deixou um clube da Ilha do Governador com dois biólogos da Uerj a bordo. Depois de uma parada rápida na Marina da Glória, a embarcação seguiu em direção ao lado oposto, vencendo as ondas da Boca da Barra.
Em apenas meia hora, sem qualquer pista, a equipe, já próxima à Fortaleza de Santa Cruz, encontrou o que buscava: um grupo de cerca de 40 golfinhos-de-dentes-rugosos, que se tornou a mais nova (e bela) surpresa da tão maltratada Baía de Guanabara. Entre os animais, há um filhote recém-nascido, sempre ao lado da mãe. Tão simpáticos quanto “Flipper”, o golfinho que protagonizava uma série nos anos 1960, alguns animais cercaram a embarcação e colocaram suas cabeças para fora, curiosos. Num certo momento, um deles brincou com o lixo flutuante — jogou para o alto uma embalagem de margarina, como se estivesse fazendo embaixadinha.
Neste outono, a Baía dá demonstrações de que, mesmo agonizante e praticamente abandonada à própria sorte pelo estado em crise, continua viva. A presença desses golfinhos (da espécie Steno bredanensis, seu nome científico) numa frequência quase que diária é algo completamente atípico. O fenômeno inusitado se completa com o fato de o mesmo grupo explorar áreas cada vez mais distantes da entrada da Baía, como a Ponte Rio-Niterói.
Passeio de animais até Botafogo
Nas últimas semanas, pesquisadores se depararam com os bichos até do outro lado da Ponte. Virou rotina acompanhá-los perto do Aeroporto Santos Dumont, do Porto do Rio, do Museu do Amanhã, da Praia de Botafogo e da orla de Niterói. A cada dia, os golfinhos-de-dentes-rugosos dão show nas águas da Baía, com cenas de piruetas no ar, atraindo a atenção de esportistas, pescadores e profissionais embarcados em navios. Dois grupos de pesquisa monitoram hoje a turma: o Laboratório de Mamíferos Aquáticos e Bioindicadores (Maqua), da Faculdade de Oceanografia da Uerj, e o projeto Baleias e Golfinhos do Rio de Janeiro, que atua em parceria com a Fundação SOS Mata Atlântica, o Programa Marinho do WWF-Brasil e o Instituto Mar Adentro.
— O golfinho-de-dentes-rugosos é o nosso muso do outono — elege a bióloga Liliane Lodi, do Baleias e Golfinhos. — Há dois meses acompanhamos um grupo, entre 40 e 50 animais, na Baía de Guanabara, pescando. É a época da tainha. Desde 2004, trabalho monitorando golfinhos na nossa costa, mas nunca tinha visto eles entrarem com essa frequência e indo tão dentro da Baía. E há vários filhotes junto. Às vezes, assistimos às mães ensinando os bebês a pescar: elas soltam o peixe para os filhotinhos; se eles não conseguem pegar, elas repetem.
Um grupo de cerca de 40 golfinhos, da espécie dentes-rugosos, se tornou a mais nova (e bela) surpresa da tão maltratada Baía de Guanabara Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo
Os animais que no momento habitam a Baía são sempre os mesmos. A identificação é feita por marcas nas nadadeiras: eles mordem uns aos aos outros como forma de brincar. Os representantes dessa espécie possuem estrias verticais nos dentes (por isso o nome pelo qual são conhecidos), podem medir até 2,80m e têm a boca cor-de-rosa. Também emitem sons que servem para explorar o ambiente e localizar presas. Na Baía, seguem barcos e canoas havaianas. Entre uma pescaria e outra, dão saltos no ar, atraindo cardumes:
— Eles brincam com os sacos, ficam jogando de um para outro. Mas esse plástico pode também matá-los — diz o biólogo Alexandre Azevedo, integrante do Maqua, que também monitora os botos-cinza.
Pela última estimativa, restam apenas 34 botos na Baía de Guanabara, sendo que eles estão cada vez mais restritos ao fundo do espelho d’água. Pelo observação dos pesquisadores do laboratório, os golfinhos-de-dentes-rugosos não costumam ficar assim tão à vontade em áreas habitadas pelos botos. Com o caminho mais livre, aproveitam:
— Talvez estejam colonizando o espaço deixado pelo boto-cinza na Baía. Há essa possibilidade, mesmo que pequena. A característica deles é se deslocar muito em busca de alimentos. Golfinhos vistos aqui também já foram registrados por pesquisadores no Norte de São Paulo e na Ilha Grande — afirma Alexandre.
O Maqua tem registrado 150 animais da espécie que frequentam a Baía. Alguns observados agora são os mesmos de outros anos. Mas, em 25 anos de acompanhamento feito pelo laboratório, é a primeira vez que um grupo parece ter “se mudado” para a Baía. Pode ser que a turma permaneça até o fim do inverno.
Tainha é uma “iguaria”
Os reais motivos para essa mudança de comportamento são um mistério. Há algumas hipóteses. Além do espaço deixado pelos botos, há um possível aumento na quantidade de tainhas, que estão na época de reprodução. Presidente da Associação Livre de Pescadores e Amigos de Itaipu, Jorge Nunes de Souza, o Chico, diz que, desde o ano passado, o litoral do Rio, incluindo a Baía, conta com mais peixes da espécie pela restrição à pesca industrial no Sul do país, imposta pelo governo federal desde 2015. Os golfinhos já foram em vários momentos flagrados por câmeras dos pesquisadores com tainhas na boca e também peixes-espada, outro “prato” muito disputado.
— A presença deles não quer dizer que a qualidade da água esteja melhorando. Eles se alimentam aqui, mas estão expostos a todo tipo de degradação da Baía de Guanabara. Mas, apesar disso, a Baía continua muito importante para a vida marinha. Ela precisa é ser cuidada, porque tem muito a oferecer — destaca Alexandre, do Maqua.
Liliane Lodi conta que, em abril, se deparou com um filhote bem pequeno com a mãe. Agora, já está maior e mais gordinho. Sinal de que há vários dentes-rugosos cariocas na área. Após o inverno, pesquisadores dizem não saber qual será o destino do grupo, que, enquanto não vai embora, diverte turistas e quem navega pela Baía de Guanabara. A cada encontro, a festa é grande:
— É muita emoção remar com eles — diz o biólogo e professor de canoa havaiana Paulo Cordeiro. — Ver um animal selvagem em sua plenitude, senhor absoluto do seu ambiente, é fantástico. Sem falar que eles agora estão na nossa raia de treinos. É um privilégio compartilhar o mar com esses mamíferos.
Fonte:
O Globo