Muito bom artigo da Dra. Vanice Orlandi, Presidente da UIPA/SP.... Uma aula de quem sabe falar em defesa animal. Foi publicado na Revista Conceito Jurídico. Vale a pena ler. Tem excelentes outros artigos sobre o mesmo tema. Excelente material para quem quer se preparar na causa.
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Apesar de vedadas pela Constituição da República, as práticas que submetem
animais à violência seguem impunes, toleradas e até promovidas
pelo poder público, a quem cumpriria resguardá-los de quaisquer
atos cruéis.
Explorados em fazendas, arenas, jaulas e laboratórios, são expostos a procedimentos
que, embora aterradores, são legalmente admitidos, sem questionamento,
clemência ou pudor.
Em nome de uma suposta ciência, da ganância econômica e até do entretenimento
público, consente-se na subjugação, no aprisionamento e na eliminação da
vida do animal.
Determina-se o martírio nos experimentos científicos, na criação
industrial, nos rodeios e nas vaquejadas, além da tormentosa morte na caça e nos
abatedouros.
Apesar de cruéis, tais condutas não são analisadas à luz do artigo 32 da Lei nº
9.605/1998, que tipificou como crime ambiental praticar atos de abuso, maus-tratos,
ferir ou mutilar animais silvestres, nativos ou exóticos, domésticos ou domesticados.
Dessa forma, a abrangência da legislação pátria protetiva restringe-se às
condutas dolosas não consentidas, que constituem uma minoria de casos isolados
que vitimam os animais, ao passo que se exclui da esfera de alcance da lei
punitiva, e até da norma inserta no art. 225, § 1º, inciso VII da Constituição da
República, a crueldade que se perfaz em práticas toleradas ou admitidas pelo
poder público.
É interessante notar que as lutas políticas travadas contra a realização de atividades
que impõem sofrimento aos animais sempre resultam na edição de leis permissivas
dessas mesmas atividades, como se a norma tivesse o condão de alterar a
natureza das coisas e dos fatos, tornando moral, legítimo e honesto o que provoca
dor e padecimento a seres vivos. Embora inconstitucionais, leis autorizativas de
práticas cruéis acabam por produzir os efeitos legais a que se destinam, atuando
como ferramenta processual em desfavor dos animais e da legislação que os protege.
É o caso das leis permissivas de realização de rodeios e vaquejadas e da utilização
de animais em testes, pesquisa e ensino, dentre tantas outras.
Episódio recente revela manobra política ainda mais insólita. Tão logo o Supremo
Tribunal Federal reconheceu a inconstitucionalidade de lei estadual cearense permissiva
das vaquejadas, uma proposta de emenda constitucional foi apresentada
para estabelecer que não serão consideradas cruéis as manifestações culturais
definidas na Constituição da República e registradas como bem de natureza imaterial
integrante do patrimônio cultural brasileiro!
Ora, norma alguma, ainda que de natureza constitucional, pode legitimar como
esporte, ou cultura, prática de natureza violenta, que impõe sofrimento físico e
mental aos animais. Sua realização constitui crueldade, a despeito de norma que
a autorize e a classifique como manifestação cultural.
Na denominada vaquejada, dois vaqueiros galopam, em velocidade, no encalço
de um animal em fuga, que tem sua cauda tracionada e torcida para que tombe ao
chão.
O gesto brusco de tracionar, violentamente, o animal pela cauda pode lhe
causar luxação das vértebras, ruptura de ligamentos e de vasos sanguíneos, estabelecendo-se,
portanto, lesões traumáticas com o comprometimento, inclusive,
da medula espinhal. Não raro, sua cauda é arrancada, já que o vaqueiro se vale de
luvas aderentes.
Práticas brutais e abusivas, pelo princípio da moralidade, não deveriam ser objeto
de regulamentação, mas sim severamente coibidas até a sua completa abolição.
Mas longe disso, dá-se à tutela jurídica dos animais as feições limitadas que
interessam aos que os exploram, em completa desconsideração à sua condição
de ser vivente, sensível e vulnerável.
Também esse é o caso da caça do javali, autorizada pelo Ibama por meio da
Instrução Normativa nº 03/2013, como suposta forma de controle populacional
dessa espécie. Convertidos em alvo de caça, javalis são perseguidos, capturados e
abatidos, ou diretamente executados, no chamado “manejo de controle.”
A morte tenebrosa que surpreende com a brutalidade devastadora de rifles
calibrosos surge pelas mãos de milhares de caçadores cadastrados pelo poder
público, inclusive em São Paulo, cuja Constituição daquele estado proíbe a caça,
sob qualquer pretexto, em todo o território paulista.
Com o uso de armamento pesado, muitos javalis alvejados agonizam, por dias,
antes do óbito. Utilizados na maior parte das caçadas, cães são destroçados por
aquela espécie, em uma luta sangrenta e desigual.
Importado, especialmente, da França e do Canadá, o javali europeu foi introduzido
no país nos idos de 1990, para sua exploração comercial, atividade que malogrou,
resultando na soltura seguida da reprodução descontrolada desses animais.
A despeito da problemática representada por essa espécie em outros países, o javali
foi trazido ao Brasil sem análise alguma de sua potencialidade nociva e dos riscos
envolvidos em sua importação. Violou-se o princípio da precaução, norteador das
políticas públicas ambientais.
Nada justifica o violento massacre dessa espécie, hoje tida como exótica e
invasora, mesmo porque tal medida mostra-se contestável também como forma
de controle, já que a população dessa espécie permanece numerosa, apesar de
perseguida e caçada, em muitas regiões, há mais de vinte anos, como é o caso do
Rio Grande do Sul.
Com efeito, os incisos II e IV do artigo 37 da Lei nº 9.605/1998, declaram não
constituir crime o abate de animal, quando realizado “para proteger lavouras,
pomares e rebanhos da ação predatória ou destruidora de animais, desde que
legal e expressamente autorizado pela autoridade competente ou por ser nocivo
o animal, desde que assim caracterizado pelo órgão competente”.
Referidos dispositivos instituem excludentes de ilicitude que deveriam ser aplicadas
como medidas de exceção, e apenas diante da impossibilidade de utilização
de método menos gravoso.
Tais excludentes, entretanto, assumiram foros diversos, oportunamente usadas
como justificativa legal para legitimar a instituição da caça, em afronta à Constituição da República, que em seu artigo 225, § 1°, inciso VII, enuncia incumbir ao poder
público vedar as práticas que submetam animais à crueldade.
Se a norma constitucional não permite a submissão de animal à crueldade, e a
própria Lei de Crimes Ambientais, em seu artigo 32, tipificou os atos de abuso, de
maus-tratos, de ferir e de mutilar animais, decerto que o artigo 37, em seus incisos
II e IV, não pode ser interpretado como permissivo da caça, sob pena de contrastar
com a legislação pátria que rege a matéria.
Entendimento contrário conduziria à absurda conclusão de que a lei consente
no extermínio de animais, mas pune quem deles abusa, ou os submete a maus-tratos,
a ferimento ou a mutilações!
Se alguma espécie é tida por nociva pelo órgão competente, medidas razoáveis
e aceitáveis de controle populacional deveriam ser adotadas, em substituição à
denominada caça de controle, prática que além de ser vedada pela Constituição
do Estado de São Paulo, ainda incide na norma punitiva do artigo 32 da Lei nº
9.605/1998.
Convém lembrar que a legislação tutela os animais, individualmente, considerados,
o que independe de pertencerem, ou não, à uma espécie numerosa. Decorre
daí que a existência de um grande número de javalis não pode ser tida como um
salvo-conduto para matar.
Conforme manifesto subscrito por neurocientistas de vários países, a capacidade
de sentir dor e, portanto, de sofrer, não difere entre humanos e animais, uma
vez que as estruturas cerebrais que produzem a consciência no homem também
existem nos animais.
Mas em oposição à sua natureza de criatura sensível, animais são economicamente
explorados, como mercadorias e produtos de consumo. Indiferente à sua
dor, nosso sistema jurídico não os reconhece como sujeitos de direito, dispensando lhes
o mesmo tratamento legal conferido às coisas, como se a única forma de vida
existente, valorosa e digna de proteção fosse a humana. Por sua vulnerabilidade,
os animais deveriam ser acolhidos e resguardados; ao revés, são vítimas de uma
crescente e impiedosa exploração econômica.
As normas jurídicas são editadas com os olhos postos, unicamente, nos direitos
dos homens, dentre os quais o de explorar todas as outras espécies, prerrogativa
a que o homem se arroga.
Sem constrangimento moral algum, o homem colocou-se no topo de uma hierarquia
por ele mesmo engendrada.
Como se fosse o único ser passível de sofrimento, apenas o homem vem merecendo
do Estado a garantia de não ser submetido à crueldade e o benefício de ter
seus direitos e interesses particulares sempre reconhecidos e preservados.
Nessa
esteira, ficam protegidos, legalmente, até os direitos mais censuráveis como o
de se entreter com o sofrimento e a morte dos animais, na caça, nos rodeios, nas
vaquejadas e num sem-fim de procedimentos cruéis.
Um sistema jurídico que não busca despertar a compaixão, não se inspira pela
virtude, e ainda admite e legaliza a violência com seres vivos merece ser revisto e
submetido a princípios morais mais elevados, dignos, ao menos, de um povo que
atingiu um certo grau civilizatório, em seus séculos de existência.